“Ninguém sabe o que aconteceu”

“Ela se jogou da janela do quarto andar, nada é fácil de entender”

Nas entrevistas que dei até agora, que foram quatro, houve uma tendência a usar o meu gatilho como a principal causa da minha tentativa de suicídio. Assumo que fico incomodada com isso, porque parece muito óbvio que aquilo não foi o motivo. Afinal, soa um tanto quanto bizarro querer tirar a própria vida por conta de uma recuperação em matemática em plena sexta série. Mas, como definir o que é bizarro ou não numa situação dessa? Como dar pesos para os problemas e chegar numa fórmula mágica final que explica tudo? Impossível. Então, a minha conclusão hoje quanto a isso é: é impossível definir “A” causa. Pode-se até juntar “as possíveis causas”, mas acho que tudo ficaria no achômetro.

Então, como resumo da ópera toda, não tem para onde apontar o dedo. Não dá para definir do sabor do bolo todo. Cada vez que provar um pedaço, vai prevalecer um sabor. Assim, o que cabe a mim agora é simplesmente narrar como foi o “tal dia”. E aqui vai.

O “tal dia” foi no dia 3 de dezembro de 2004, uma sexta-feira. Havia dormido na casa da minha prima e fui para o escritório da minha mãe, que era na Paulista. Chegando lá, já estava de férias, mas ainda faltavam sair algumas notas, entrei no site do colégio e, paraaaam, faltava meio ponto para passar direto em matemática. Ai vem aquele turbilhão de coisas na cabeça. “Como deixei isso acontecer?”, “Vai todo mundo saber que não passei direto”, “Como explicar isso para os meus pais?”. Depois de alguns minutos em estado de choque, olhando para a tela do computador, virei para a minha mãe, que estava sentada ao meu lado, e contei. E o que ela respondeu? “Como você deixou isso acontecer?”, “Como você não passou direito?”. Não, nada disso. O que ela disse foi “Tá bom, vê quando é a prova”. Ah, então foi tranquilo, já estava calma. Não. Eu não aceitava aquilo, eu estava inconformada com aquilo. A única coisa da vida que eu fazia era estudar e nem isso estava fazendo direto, como pode uma coisa dessa?

Saímos do escritório e ela me deixou em casa. Isso foi por volta das 14h. Estava muito inquieta, inconformada, não conseguia sossegar. Então pensei “preciso dormir, preciso desligar, preciso esquecer que isso está acontecendo. Preciso desaparecer de tanta vergonha que estou de mim mesma”. Fui até o quarto da minha mãe, onde tinha uma caixa com remédios – nenhum forte, apenas o que todo mundo tem em casa como analgésicos, xarope para gripe e coisas do gênero – peguei a caixa toda e fui para a cozinha. Tirei todos os remédios da caixa e fui tomando comprimido por comprimido, cartela por cartela, gole por gole, tubo por tubo. Até que, ao tomar um xarope para gripe, me deu um enjoo e parei. Peguei todas as cartelas vazias e desci no andar de baixo pela escada de incêndio e joguei no lixo do apartamento de baixo.

Ao subir de volta, guardei a caixa no mesmo lugar que estava e fui para o meu quarto. Na época o MSN estava na moda. Ah, comentário pertinente para a cabeça doidinha da época: tinha o “nick” e o “subnick” no MSN, onde o “subnick” era usado para ou falar o que estava fazendo, ou se tinha algum(a) amigo(a) com você ou para por a letra de alguma música. Sabe-se la por quê, eu coloquei a parte de uma música, era MPB (sempre gostei bastante, mas nenhum amigo conhecia nada sobre, é algo bem comum na minha família). Mas acham que coloquei a música toda? Ou uma parte que realmente desse para identificar qual música era? Não, até nisso eu tinha que dar uma causadinha, né. A parte que coloquei foi “Eu estou grávida”. A música era “Eu estou grávida. Grávida de um beija-flor”. Menina do céu, para que fazer isso? Sei lá, eu lembro exatamente quando coloquei isso e era realmente porque a música estava na minha cabeça, gostava de escutar 89,7 (Nova Brasil FM) e tinha tocado essa música, mas lembro também que eu cheguei a escrever o trecho maior e apaguei, para causar mesmo. Vai entender uma menina de 12 anos.

Guardei a caixa, fui para o quarto, sentei no computador e fui bater papo no MSN. Pronto, minha memória – lúcida – parou ai. E isso era por volta de uma 15h30. Não sei exatamente o que aconteceu a partir dai, sei um pouco do que me falaram, mas ninguém sabe de fato porque, afinal, eu estava sozinha. Sei que comecei a mandar vários “emojis” e afins para o meu primo. Sei que quebrei umas coisas em casa, como quadros e porta-retratos. E sei que pulei da janela da sala da minha casa. Do quarto andar. Pulei de uma janela bem aleatória, ela costumava emperrar e ficava do lado do sofá, perto da televisão, do lado da varanda. O que foi uma sorte, dado que a janela do meu quarto dava num corredor estreito e pouco transitado do prédio, além de ter um jardim um pouco para fora. Não tinha nada embaixo da janela da sala além do chão, duro com mini paralelepípedos, e, do lado, era a portaria.

Pulei, cai do lado da portaria. O que sei é que o rapaz que morava no primeiro andar foi o primeiro a falar comigo – sim, cai acordadíssima. Ele e sua mulher foram falar comigo e passei o número do celular da minha mãe para eles. Ligaram para o resgate e para ela. Ainda acordada, fui levada para o hospital público mais perto, como de praxe, que era o Hospital das Clínicas. Fui atendida pelo setor de traumatologia e encaminhada para a UTI. No canhoto tem escrito que dei entrada às 0h34 do dia 4 de dezembro de 2004, ou seja, tenho um branco de nove horas na minha cabeça. Se eu queria ou não ter pulado, eu não sei até hoje, só sei que foi assim (já dizia o Chicó).

Lá soube que havia quebrado, de baixo para cima, o fêmur direito, a bacia, sete vértebras, o úmero e o punho, além de uma hemorragia no pulmão. E, de acordo com os médicos, não teria mais que sete dias de vida. Sete para cá, sete para lá, treze anos depois, cá estou. E dai começam os flashs de loucuras banhados de – muita – morfina. Ainda na onda do sete, fiquei sete dias no HC e fui transferida para um hospital particular, onde fiquei na UTI até o Natal (já conto por que até o Natal), e quase até o Carnaval no quarto. Onde fiz duas cirurgias e quase mais uma (a história do “mais uma” é divertida). Onde fiquei entubada, com sonda para cá, sonda para lá.

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No HC eu delirava demais, xingava todo mundo que estava internado por lá, sonhava que tinha ido viajar para o Rio de Janeiro, de maca, escondida junto com a minha avó – que mal andava. Gritava por ajuda porque o meu braço quebrado estava se contorcendo sozinho, que eu havia vomitado em mim mesma e precisava ser lavada – mas nada tinha acontecido. Tenho a imagem muito nítida de uma onça no meu leito tentando me pegar, de um elefante voando no quarto – mas esse elefante me acalmava. As vezes tinha medo de ficar sozinha, as vezes achava que estava numa fábrica, e assim foi indo. Não era a toa que ficava amarrada na cama, quebrada e delirando, não sairia boa coisa dali.

Lembro da minha mãe falando para mim que eu iria mudar de hospital no dia seguinte, que uma médica muito boa iria me ajudar, que era para eu me acalmar e não gritar nem me debater mais. Aquilo realmente me acalmou, mas não me lembro da transferência. Meu maior momento de lucidez foi, já no hospital novo e depois das cirurgias e das tentativas de cirurgia, do dia que fui desentubada. Tenho alguns flashs anteriores onde eu via os médicos discutindo ao meu lado se eu seria ou não desentubada, e por incrível que pareça, eu não queria, pois tinha muito medo de não conseguir respirar. Então me sedaram e tiraram o tubo. Foi ali que comecei a ficar consciente.

Lembro perfeitamente da cena da minha madrinha na frente da minha maca chorando, mas era de felicidade, por me ver desentubada. Eu ainda estava um pouco atordoada pelas bombas de morfina e sedativo, mas tinha entendido o que tinha acontecido. Eu ainda não conseguia falar e, nesse dia, nem podia, pois a minha garganta estava muito machucada por conta de tanto tempo de tubo. Estava com aqueles tubinhos de oxigênio no nariz e tinha que fazer fisioterapia também para voltar a respirar sozinha, todos os dias. Estava com peito muito carregado, então todo santo dia a fisioterapeuta enfiava um cano na minha garganta para puxar secreção, como aquilo era horrível, me afogava, me machucava, odiava. E também fazia exercícios de respiração e, para isso, era preciso tirar o tubinho de oxigênio. E o medo de não conseguir respirar? Sabendo disso e vendo que eu já estava melhor, a fisioterapeuta começou a “me sacanear”. Ela terminava os exercícios e saia do meu leito sem colocar o tubinho de volta, eu surtava. Apertava o botão para chamar a enfermeira loucamente, implorando para ela colocar o tubinho de volta. Até que tiraram de vez e eu me senti confiante para respirar sozinha.

Outro “momento superação” foi quando mexi, conscientemente, o meu dedinho do braço operado pela primeira vez. Foi incrível, me achei o máximo e fui tomada de alívio e felicidade. Teve também a primeira vez que comi, ainda na UTI, mas comecei a passar muito mal e tive que colocar a sonda de volta. Isso aconteceu algumas vezes, aliás, era um tal de por e tirar e sonda que só. Mas a pior dor foi, de longe, quando já estava no quarto. Comecei a ter febre e falaram que era preciso trocar o cateter que tinha entre o peito e pescoço e colocar um novo acesso no pescoço. É um acesso tão grosso que, ao tirar, era preciso dar um ponto. Não cheguei a ver a agulha, mas posso sentir aquela dor até hoje, foi horrível aquela agulha no meu pescoço, do lado direito. Eu gritava de dor e estávamos eu e o meu pai no quarto, além dos médicos. Ele implorava para pararem de tanto que eu gritava, mas eles não podiam parar porque eu não podia ficar sem aquele acesso e já tinham tirado o do peito. Enfim, colocaram, mas foi horrível.

Entre lembrança e outra tem algumas clássicas, como fingir, todos os dias por volta das 6 horas da manhã, que estava em sono profundo para não ter que fazer exame de raio x. Todos os dias passavam gritando (a sensação pelo menos era essa) pelo corredor da UTI “RAIO XXXX”, e paravam em alguns leitos para fazer os exames. Era horrível porque eu estava recém operada e doía muito para mexer e ficar na posição boa para os exames, e se você estivesse dormindo, eles passam reto. Só esquecia, sempre, de um detalhe, eles voltavam a tarde. Outra coisa que tentava dar migué todos os dias eram as injeções na barriga. Como eu não conseguia, e não podia, me mexer, eu precisava tomar uma injeção na barriga duas vezes por dia para ajudar na circulação do sague. A agulha era minúscula, mas aquele líquido entrando ardia demais, muito mesmo. Ai eu fingia que estava dormindo, mas nunca adiantou – ainda assim, eu insistia no migué furado. Ah, o migué para não ter que me mexer era usado também para não ter que tomar banho. É porquice, eu sei, mas vocês não tem ideia do quanto era dolorido a mexeção toda para o banho. As vezes colava e davam o clássico “banho de gato”, mas claro que não dava para fugir tanto assim.

Eis que no dia 23 de dezembro, ainda na UTI, surgiu a possibilidade de ser transferida para o quarto. Na UTI tem horários definidos para visitas, ou seja, eu ficava bastante tempo sozinha por conta disso. Meus pais tinham acesso livre, minha mãe dormia quase todas as noites comigo na UTI, ia embora cedinho e depois voltava. Mas como uma desgraça nunca é demais, ela teve tuberculose e não podia mais ficar comigo. Meu pai passou a ficar, já no quarto, mas como duas desgraças nunca são demais, ele zuou a coluna e teve que operar, e não podia mais ficar comigo. Enfim, eu queria, a qualquer custo, sair da UTI. Então, escutei a minha médica falando que, para que eu pudesse ser transferida, era preciso que eu diminuísse a minha dose de morfina. Só para contextualizar, eu tinha o controle da morfina, onde era possível acioná-la a cada 20 minutos, e assim eu fazia. Mas, ao escutar isso, passei a só acionar em casos extremos de dor. Depois a médica disse que eu só iria para o quarto quando conseguisse mexer um pouco mais a perna operada nas sessões de fisioterapia. E lá vem mais um migué. Quando a fisioterapeuta veio junto com a médica e dobrou a minha perna, eu engoli a dor surreal que estava sentido, fiz uma cara de plena, meti a egípcia e fingi que nada estava acontecendo. E não é que deu certo? Quando elas saíram do leito, chorei (sozinha e da forma mais discreta possível), apertei loucamente o botão da morfina, mas fui para o quarto.

Era, então, noite de Natal e foram diversas pessoas me visitar. Mas eu estava passando muito mal, deu tudo errado. Tive febre, vómitos, dores. Enfim, tudo isso, mas estava com o quarto cheio, o que não seria possível na UTI. No quarto ainda aconteceram diversos fatos marcantes que contarei numa próxima oportunidade. Para encerrar esse post, vou contar sobre as “quase cirurgias”.

Como mencionado, eu quebrei sete vértebras e, para poder operar o braço e o fêmur, era necessário, antes, operar a coluna. Colocaria alguns pinos e teria que cortar a coluna de ponta a ponta. Fui a primeira vez para a mesa de cirurgia mas faltou um material. Cirurgia cancelada, volta para a UTI, taca morfina, amarra na cama. Volto para a sala de cirurgia, falta outro material. Cirurgia cancelada, volta para a UTI, taca morfina, amarra na cama. Volta para a sala de cirurgia, esquecem de fazer lavagem estomacal, aplicam a anestesia e, ops, ..Sala infectada, cancela a cirurgia, volta para a UTI, taca morfina. Nesse tempo, meus pais aproveitaram para arranjar uma nova opinião médica. Ao conversar com o tal do “Papa da Coluna”, que foi até o hospital, olhou meus exames no meio do corredor da UTI, foi até o elevador e disse para o meu pai “se fosse a minha filha, eu não operaria”. De acordo com ele, por ter 12 anos, o tempo que eu ficaria de repouso para cicatrizar a minha perna depois da cirurgia era o mesmo para cicatrizar a minha coluna, mas sem a cirurgia, e o que ficaria era apenas uma vértebra levantada, porém que também ficaria mesmo com a cirurgia. Então o meu pai deu o piti necessário no hospital e eu não precisei operar.

Poderia ficar dias aqui escrevendo sobre aventuras no hospital, mas ninguém merece, né. Então continuo numa próxima. Afinal, o melhor que fazemos é rir e usar como lição toda essa confusão.

Música do título: Pais e Filhos – Legião Urbana

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5 comentários sobre ““Ninguém sabe o que aconteceu”

  1. Carmem disse:

    Maria tenho certeza q depois deste relato todo vc vai poderá até descrever td de novo,mas com certeza mt mais leve…
    Foi um desabafo e tanto,lembro de tds os momentos passados,a angústia ,o alívio,e hj mais ainda um orgulho do q vc se tornou…
    Nada acontece por acaso,se não servir de exemplo q sirva de lição,e vc nesta lição passou com méritos,aquele meio ponto q faltou,valeram por mts pontos na sua vida!!
    Continue esse mulher linda por dentro(por fora não vale) q vc se tornou, mh sobrinha ,meu orgulho!!
    Te amo Maria😘

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  2. terezinha de jesus tachotte disse:

    Carla,naquele fatídico dia,todos impossibilitados de poder ajudar,amigos verdadeiros e familiares desesperados…Pude presenciar quantas orações foram oferecidas,até aqueles ateus convictos apelaram para Deus,seus priminhos ,ainda crianças na época,comentavam entre eles que se pudessem dividiriam com você toda a dor que você estava sentindo.Foi muito linda a dedicação,o interesse e a generosidade das crianças que infelizmente não puderam te visitar na UTI.Foi um período de grande pesadelo para você e para todos nós,que sofremos e vibramos com cada vitória conquistada.Tudo o que queríamos era ver você recuperada,linda e vitoriosa.Felizmente saímos todos vitoriosos e aquele sufoco já faz parte do passado.

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  3. Dina disse:

    Seu depoimento me marcou muito, li com prazer, e agradecia a Deus por cada vitória sua. Louvo a Deus por está viva e agora ajudando tantas pessoas que estão passando por situações semelhante. Bjs

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