Continuando o post anterior, desde já peço desculpas pela falta de cronologia nas histórias. Como fiquei muito tempo tomando morfina e tive diversos períodos de melhoras e pioras na minha recuperação, as vezes me perco um pouco na ordem dos fatos – somado ao fato de que eu simplesmente sento e saio escrevendo, não programo nem organizo nada, então vou lembrando e pensando e vou escrevendo a la Chico Xavier.
A UTI para mim foi diversos lugares diferentes, apesar de só ter sido dois de fato. Já foi uma fábrica gingante, onde haviam diversas pessoas em cada andar e um buraco no meio dos andares. Já foi o Rio de Janeiro, já foi um cubículo, já foi um lugar muito perigoso que me desesperava ao pensar em ficar sozinha se quer por um minuto. Implorava para a enfermeira não sair de jeito nenhum do meu leito, e ela tentando explicar por que não poderia ficar comigo. Além de lembrar exatamente do rosto dela, uma baixinha com um cabelo bem comprido, muito boazinha e atenciosa. Já foi tudo azul, já foi tudo verde.
Me lembro perfeitamente de duas coisas: de um mural de fotos dos meus primos e amigos pendurado na parede do meu lado direito e da micro TV que ficava no meu leito. Eu não conseguia me mexer direito, então não conseguia mudar de canal – além de só ter canais abertos, o que não me dava muitas opções. Era Globo o dia todo – época de “Senhora do Destino”, não perdi um dia de Nazaré Tedesco, e do tsunami – vi desde “são dez desaparecidos” até “são mais de 200 mil mortes”. Lembro também que logo que começava o Bom Dia São Paulo, começava a agonia. Primeiro que era a hora que a minha mãe ia embora – como disse, ela dormia bastante comigo na UTI e ia embora pela manhã – segundo que era quando passavam os caras gritando “RAIO XXXX” e eu ficava fingindo que estava dormindo, morrendo de medo de não dar certo. Todo dia a mesma coisa.
No quarto era uma mistura de mais tranquilidade com momentos de medo. Tinha medo de piorar e ter que voltar para a UTI. O dia na UTI era muito intenso porque era possível escutar bastante coisa que acontecia por lá. Lembro de pessoas falecendo, lembro que havia uma moça ao meu lado (nunca cheguei a vê-la, só escutava as histórias) que havia caído de uma moto e sido arrastada por um ônibus. Estava acordada, mas muito machucada e para trocar os curativos era preciso ir para o centro cirúrgico. Era agoniante toda vez que a levavam porque ficava pensando se ela voltaria. Sempre voltou, ainda bem. Tinha horário de visitas, então quando estava chegando perto do horário, sempre ficava ansiosa para saber quem iria lá. Haviam as pessoas que iam sempre e nos mesmo horários e tinha sempre uma surpresa ou outra, na maioria das vezes, à noite. Mas ficava chateada porque só podia entrar duas pessoas por vez. Então as pessoas ficavam pouco porque tinha que trocar com quem estava lá fora.
No quarto, não. Era grande e, claro, fechado, então eu não via nada que acontecia. Quando ficava sozinha era um tédio, não tinha nada para me distrair sem ser a TV, mas por não ter horários para visitas, mais pessoas passavam por lá. As emoções do dia a dia do quarto foram por minha conta mesmo. Comecei a passar muito mal todas as vezes que comia. Ai isso se agravou para todas as vezes que ingeria algo, mesmo água. Nesse meio tempo tentaram algumas coisas como uma época (não me pergunte quanto tempo, posso falar que foi por um dia como também por um mês que a sensação fará sentido) em que só podia tomar Coca-Cola (sim, isso aconteceu de verdade). Depois só suco de maçã (aqueles da Yakult). Depois tira tudo, coloca a sonda (de novo) e nem água. Comecei a surtar de sede e liberaram para o meu pai apenas molhar os meus lábios com gaze com um pouco de água. Lembro da agonia dele com o meu desespero porque eu chorava que queria beber água de fato, mas ele não podia me dar, e eu tentava roubar a gaze dele para puxar toda a água possível dela. Um dia implorei tanto que ele me deu um gole de água. Passei mal. Os nojentos que me desculpem, mas era um líquido bizarramente verde. Aí comecei a vomitar mesmo sem ter ingerido nada. Um dia estava só eu e a minha prima no quarto, ela tinha um sono muito pesado e eis que ela pega no sono. Subiu o meu querido líquido verde e pensei “agora já era, ela não vai escutar, o botão para chamar a enfermeira está longe e eu vou ficar suja por um tempo”. E não é que ela acordou com o meu barulho e levantou a tempo de pegar uma toalha que estava por ali e por no meu colo?
Essas correrias aconteceram algumas vezes até colocar a sonda de novo. Por ela eu “comia” – era engraçado. Eu sentia fome, então colocavam uma garrafa com uma vitamina dentro na ponta da sonda e via o líquido entrar e sentia o estômago enchendo até que – pã raaaam – a fome passava. Passado um tempo, via o tal líquido verde saindo pelo cano do meu nariz. Para tirar foi bizarro também, a moça dizia “prende a respiração e, se subir algo, segura”. Então ela puxava o tubo que ia até o meu estômago bem rápido, era estranho, mas rápido e não doía pelo menos. Teve a época da insônia. Não tinha nada que me fizesse dormir. Ficava muito irritada e batia a perna na cama de raiva e meu pai falava para eu parar se não teria que operar de novo. Pior que nem era aquelas coisas de pai para assustar o filho e, então, ele parar – era verdade. Com isso, passaram a me dar Dormonide todos os dias para dormir. Depois ficaram me dando migué, colocavam água no meu acesso e falavam que era o remédio. Azar deles, porque parei de dormir de novo. Teve um dia que tinham duas primas minhas lá no meu quarto e vieram me dar o remédio. Eu disse “não precisa ir embora porque esse remédio não faz efeito nenhum”. Não fiquei acordada nem a tempo de ver tirarem a agulha do acesso.
Para lavar o cabelo era uma zona. Para todos banhos era preciso colocar um lençol de plástico embaixo de mim e ir jogando água. Quando lavava o cabelo era muita água, espuma do shampoo e do sabonete, era difícil de secar. Comecei a usar pijamas ao invés de usar só aquela roupinha super sexy de bunda de fora de hospital. Minha tia costurou uns bem fofos para mim e práticos, fez de velcro dos lados amarrava em cima para eu não ter que me mexer tanto para coloca-los. Mudar de posição era bizarro, tinha que vir duas enfermeiras para me virar direito – afinal, tinha sete vértebras quebradas, cada movimento era milimétrico. Me viravam e colocavam uns travesseiros atrás para que eu não me mexesse, dava o tempo que tinha que ficar assim e voltavam para me virar de novo. Cada semana ganhava um ângulo a mais de inclinação na cama, era bom ver as coisas sem ter que ser deitada 24h por dia. O primeiro dia que sentei foi emocionante. O médico que havia dito que eu não precisava operar a coluna foi lá me ver. Ele me sentou – e eu fiquei com bastante agonia de como ele me puxou rápido – na beira da cama e me soltou. Se eu fiquei três segundos foi muito e já fiquei tonta, ai ele me deitou de novo. Não entendi nada na hora. Ele disse que eu estava ótima já, não entendi nada porque foi tudo muito rápido, mas ele disse que o tempo que eu fiquei sentada mostrava que eu estava me recuperando bem.
Chegou o dia de ir para a casa. Não estaria livre da vida a la hospital, mas seria um hospital em casa. Lá montaram uma cama de hospital, cadeira de banho de hospital, enfermeira, terapeuta e fisioterapeuta. Fui de ambulância para casa e ficava falando para o motorista ligar a sirene e ir rápido para ser mais legal e ele falava que não podia porque eu não estava em estado grave, além de não poder me mexer muito. Chegando lá, problema número 1: como subir no elevador se eu não podia sentar? Foram dois enfermeiros da ambulância no elevador comigo, cada um segurando uma ponta do lençol e eu deitava nesse lençol, mas como não cabia deitada no elevador, era na diagonal, tudo doido. No quarto, era o da minha mãe no caso e ela estava no meu quarto, tinha TV, som, computador e um pote com balas e chocolate que eu não alcançava, que raiva.
Minha mãe ainda não podia ficar muito comigo por conta da tuberculose dela. Algumas pessoas iam se revezando por lá, entre parentes e amigos. A primeira vez que sai de casa foi quando o meu padrinho me sequestrou. Ele foi lá, me botou na cadeira de rodas (ela estava em casa, mas nunca tinha usado ainda), e me tacou no carro. Minha mãe queria mata-lo. Fisioterapia era a raiva do dia – todos os dias. Quando escutava o barulho do salto dela o bode subia. Doía muito e ela não dava moleza. Algumas sequelas eram inevitáveis, mas ela fazia de tudo para minimizar, o que implicava em insistência sem fim. No final, ela falou que eu não iria mais conseguir virar a mão esquerda como antes, ela dá uma travada, e o meu braço não esticaria até o fim. Assim estou até hoje e atrapalha pouco. O braço não esticar inteiro nem lembro, a mão não virar atrapalha em algumas coisas como pegar algumas coisas, pelo fato dela não virar direito, eu acabo deixando cair bastante coisa – somado ao meu jeito desastrado, desastres são comuns.
Voltei para a escola depois de um tempo, mas falo nisso num outro dia. Depois de um tempo de só cama, depois cadeira de rodas, fui para a muleta. Isso por volta de março. Cheguei a fazer uns dias de fisioterapia na rua, até que um dia o porteiro do prédio ao lado saiu para falar comigo e disse “Eu te vi caindo lá de cima, não faça mais isso não”. O que responder? Eu olhei para a minha fisioterapeuta, dei uma risadinha e falei “Fica tranquilo que não irá acontecer de novo” e sai rindo. A primeira vez que coloquei o pé no chão e dei um passo sozinha foi na hidroterapia – fora da piscina, claro. Fique tensa e tive que dar os três passos que dei segurando na barra porque não tinha força para andar sozinha ainda. Lembro da emoção da minha mãe vendo aquilo. Eu não consegui me emocionar na hora porque estava focada em não cair. A hidroterapia era um momento de liberdade também, porque não segurava em nada e estava livre na água.
Como tratamento, além da fisioterapia, fazia também hidroterapia. Depois mudei para a natação – todos os dias da semana – mais pilates, RPG (ô negocinho ruim) e acupuntura. A semana era bem intensa. Um dia marcante da acupuntura foi quando estava entrando no carro. Eu ia com a muleta até a porta, virava de costas, sentava e puxava a minha perna com as mãos para dentro do carro. Teve um dia que consegui virar sem usar as mãos, foi demais. Depois, já sem as muletas, fiquei em choque quando consegui subir um degrau normalmente, porque antes eu só conseguia subir um degrau com a perna esquerda, que era a boa, e subia a direita para o mesmo degrau depois, ai depois a esquerda para o de cima e a direita ia depois para o degrau que a esquerda estava, não um acima, e assim ia. Até que um dia, já em 2006, comecei a sentir muitas dores e descobri que o problema era mais sério que o imaginado. Voltei a usar muletas por mais uns meses. Tive que ficar um tempo de repouso em casa, um saco. Minha mãe comprou um Playstation e uma caixas para eu pintar e decorar para passar o tempo. No Playstation me viciei no Harvest Moon, um joguinho que eu tinha que cuidar da minha fazenda e fazê-la crescer. Já estava com ensino superior em agronomia.
Foi a partir dai que soube que o meu problema da perna não teria uma solução simples. Havia estourado a fonte de alimentação da cabeça do meu fêmur, então ele estava em processo de necrose, onde a única saída é colocar uma prótese. Mas, ao colocar a prótese, é contagem regressiva para parar de andar, pois só é possível realizar uma troca. Então, ao colocar, fico 20 anos com a primeira prótese e mais 20 com a segunda, e só. Estou assim até hoje, sinto dores as vezes, as vezes da vontade de desencanar e por logo a prótese, mas ai faço as contas e desisto. De acordo com os médicos, sou eu quem vai escolher a data da cirurgia, seja quando não aguentar mais de dor, seja quando não tiver mais qualidade de vida, como não fazer diversas coisas por causa da perna. Hoje me privo de diversas coisas por conta da dor, mas ainda está suportável, basta saber até quando. Minha mão ainda não vira, meu braço ainda não estica por completo, ainda sinto dores nas costas, mas estou ótima.
Música do título: Por Enquanto – Cássia Eller (na verdade, a composição é do Renato Russo, mas .. )
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